Deve ser isso que os crentes chamam de "ver a luz". Eu vejo a luz no meu monitor todos os dias. Uma crônica para quem passa horas demais na internet.
Por Cristiana Soares
On. Bocejo. Musiquinha do Windows. Bom dia. MSN, Hotmail, Gmail, Gtalk, Orkut, Skype. Lá fora faz sol ou estaria chovendo? As marginais estariam livres? Por curiosidade (e por um certo sadismo em ver os outros sofrerem nos engarrafamentos), abro o UOL antes de abrir as janelas de casa. Acontecimentos principais do dia. Curiosidades. Buraco de metrô que desaba. Feliz por não precisar das ruas, das marginais, do metrô. Na segurança do meu lar. E em todos os lugares ao mesmo tempo.
Começo a trabalhar, sem noção de hora. Conversas paralelas, pesquisas, viajadas. Tudo online e a cores. Onde estava mesmo? Ah, naquele texto. Mas preciso de um link. Um do tipo hiper. Hiperperdida, novamente. Fome. Comida. Qualquer uma, às vezes. Hoje, pausa para cozinhar no capricho. Entre cebolas e refogados, uma conferida nos e-mails.
De frente para a tela, minha mesa do almoço. Meu cérebro se estilhaça em mil. Um para cada direção das milhares de informações. Sensação de frustração por perceber que há mais informações do que uma cabeça. Uma cabeça-grão num universo cyberinfinito. De que site vim, para que site vou?
Pelo menos a comida é proporcional ao tamanho do estômago. Pelos menos essa sensação de saciedade eu posso realizar. Mas a postura sentada não ajuda na digestão. Clicar fica complicado. O corpo me obriga a desgrudar da cadeira giratória.
Na posição deitada. 15 min. O suficiente para planejar as próximas linhas que vou escrever, os próximos e-mails que vou enviar e matutar como vou fazer para ganhar dinheiro na web. Já que viver longe dela é impossível, então ela vai ter que me sustentar.
Nunca havia me viciado antes em nada desse mundo que chamamos real. Mas agora, sou uma e-adicta. Com direito a crise de abstinência. Graças aos céus, nas minhas férias, fiquei hospedada em um lugar com conexão banda larga full-time.
A Quântica tem um conceito chamado "emaranhado". Onde todas as coisas estão interligadas, sem começo nem fim. Deve ser isso o que as pessoas chamam de Deus. De destino e tudo o mais que a religião tenta explicar. A internet não é o supra-sumo dessa concepção? Tudo está muito claro, pra mim, agora.
Por isso, se religião vem de religare, nunca fui tão praticante. Deve ser isso que os crentes chamam de "ver a luz". Eu vejo a luz no meu monitor todos os dias. E tenho vontade de ajoelhar. Agradecer por estar viva para vivenciar essa experiência. Estar conectada. Entrar em comunhão.
Não, não me convidem para um passeio, se ele durar mais do que algumas horas. Pois tenho a sensação de estar perdendo alguma coisa. Algum viral, algum blog novo, algum amigo do outro lado do oceano que tentou entrar em contato.
Está preocupado comigo, eu sei. Mas antes de me criticar faça uma auto-análise. Não seja o e-roto falando do e-esfarrapado. Prove-me através de fotos ou outras evidências que você passa a maior parte do seu dia longe de um personal computer.
Está chegando a noite e sinto-me culpada. Os passarinhos cantaram lá fora e eu não os ouvi, pois meus ouvidos estavam ocupados com o canto de um MP3.
Um cansaço fractal me abate. Antes da cama, uma tv, um telefonema, para dar sentido a esses objetos ultrapassados que moram comigo. Não quero deixá-los enciumados depois de tantos anos de serviços prestados.
Vou sonhar que cada click vale um cent. Off.
Sobre a autora
Cristiana Soares é publicitária e escreve no Blog Talk.